terça-feira, 24 de agosto de 2010

O casório

Estatisticamente, pequenas neuroses e bastante inveja se manifestam com mais contundência quando há muitas pessoas envolvidas.E há muitas pessoas envolvidas numa instituição popular e, alguns dizem, falida: o casamento.Poucas cerimônias contemplam tanta neurose num mesmo espaço quanto a de casamento, e, durante a sua celebração, a inveja atinge o pico da sua consumação. Portanto, cuidado com a lista de convidados.Nunca inclua aquele amigo que acabou de se separar e odeia toda a humanidade. Especialmente a humanidade do sexo feminino.

Por quê?

1) Quando ele recebe o convite, repara se a caligrafia impressa no envelope é manual ou computadorizada, analisando-o contra a luz e lentes. Para checar se a festa será econômica ou regada. Se o convite chegar pelo correio, ele não vai. Nem se vier colado o selo do papa. E quando ao lado do nome de um pai ou mãe aparece a expressão in memoriam, ele automaticamente afirma para os íntimos: “Puxa, o pessoal morre cedo nessa família.”

2) Se o convite for acompanhado de um cartão com nomes de lojas, em que estarão as listas de presente, o primeiro pensamento que lhe ocorre é: “Que gente gananciosa, aproveitadora, casam-se só para ganhar eletrodomésticos, talheres e cristais.” E se pergunta: “Qual dessas lojas têm coisinhas mais em conta?”

3) Ele fica em dúvida se vai até a loja e compra algo da lista, ou repassa aquela sorveteira de cristal que nunca usou e ganhou no seu terceiro casamento, de uma prima de quem ele nem vai com a cara, que provavelmente ganhou no quarto casamento dela e lhe repassou o chamado PDO (Presente de Ocasião), ou PP (Presente Passa).

4) Ele tem que ir à loja, porque descobre que Lia, a sua diarista, apelidada de “o fenômeno”, pois cozinha, lava e passa fenomenalmente mal, quebrou a sorveteira de cristal que ele nunca usou, já que toma sorvete no próprio copo, com a mesma colher, e o guarda no freezer se sobrar; um dos motivos para as mulheres o abandonarem. Ele se irrita com o fenomenal hábito de Lia quebrar louças e deixá-las montadas, como um quebra-cabeça, para, quando ele pegá-las, elas caírem da mão dele aos pedaços, e estar garantido o direito razoável da dúvida. Nunca será provada a culpa de quem quebrou aquela pobre louça, nem por escuta telefônica, nem por interfônica, já que Lia passa o dia falando dele pelo interfone com a síndica. Mal.

5) Na loja, ele já chega perguntando: “O que tem de mais barato na lista do casal tal?” E se não tem nada de barato na lista do ambicioso e aproveitador casal, que nem se ama, desconfia, mas se casa para vender os presentes e rachar os lucros, o conviva mal-humorado e mal-amado compra aquele relógio de parede de cozinha em promoção por R$ 19,90. Duvida?

6) O amigo do noivo fica na igreja ao lado da família do noivo e considera a família da noiva intrusa, vivenciando a Síndrome de Montesco Vesus Capuleto. Ele comenta que os padrinhos da sua ala (noivo) estão infinitamente mais elegantes do que os padrinhos do inimigo. E se algum dos Capuleto tiver um vulpes vulpes carnívoro, canídeo, mais popularmente e carinhosamente conhecido como raposa, pendurado no pescoço, ele não faz carinho no focinho do mamífero, o pendurado, mas joga tinta em protesto contra o uso de pele animal.

7) Ele acompanha a missa enumerando as maluquices dos tempos de solteiro do amigo que deixa de ser solteiro. Ao ver noiva entrar, aponta e pergunta para o seu vizinho de banco: “Aquilo é barriga de chope ou gravidez?” Quando o padre diz “prometa amá-lo na tristeza e na alegria, na saúde e na doença, amando-o e respeitando-o todos os dias de sua vida, até que a morte os separe”, o conviva, que já foi abandonado por três mulheres, ri e comenta: “O padre não conhece as estatísticas.” E completa: “Até o cartão de crédito ser cancelado.” Quando o padre informa que ela não poderá traí-lo, ele se empolga e diz, para a sua fileira: “Não ponho a mão no fogo nem pela minha mãe.”

Na comunhão, avisa aos avós da noiva: “Olha lá, não vão engolir a hóstia. Tô de olho…” Na fila de cumprimentos, ele diz para a noiva “casamento é duro”, “mata-se um leão a cada manhã”, “você está linda”, “cuida bem dele” ou “se ele não cuidar bem de você, me telefona”? E para o noivo, seu amigo, diz “meus pêsames”, “viu a Salete, como está gostosa” ou “continua o pôquer às quintas-feiras”? Para o mãe da noiva, diz “está linda a festa”, “está linda a igreja” ou pergunta se tem outra filha sobrando? E para o pai da noiva, “se ele aprontar, deixa comigo”, ou pergunta quanto pagou pela cerimônia e a garrafa de Red Label?

9) Durante a festa, ele organiza um pequeno exército para hostilizar os convidados da noiva? Dá em cima da vocalista da banda, que é mulher do tecladista, e pede todo o tempo “toca Raul!”? Sobe no palco, pega o microfone e relembra velhas e boas do amigo, como quando eles fizeram uma suruba no cursinho e a primeira vez em que foram para a zona e fugiram sem pagar?

10) Você sabe quem se mete no meio das mulheres para pegar o buquê? E quem coloca dezenas de bem-casados nos bolsos? E quem se empolga, dá em cima da tia avó bêbada, e a convida para conhecer a sua coleção de louça quebrada?

11) Na fila dos manobristas, um colega anuncia que acabou de se separar. Sabe o que ele fala? “Que bom, aquela sem-vergonha dava pra todo mundo do escritório”.

12) Um outro amigo, também bêbado, diz que a mulher não veio, porque o trocou por um surfista profissional de 19 anos. “Ela me disse que eu nunca encontrarei ninguém melhor do que ela”, o amigo finaliza. Sabe como ele o conforta? “Ainda bem, né?” E tem a cara-de-pau de perguntar com quem ficará o apê, lembrando que o casal morava numa coberturazinha de um prédio antigo, pé-direito alto, armário embutido, banheira, com uma baita vista e condomínio barato. Afinal, é perto do metrô. "

Por Marcelo Rubens Paiva Seção: SEM CATEGORIA 10.agosto.2010

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